A Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida entrevistou o pesquisador do ObAgro, Allan de Campos Silva, doutor em Geografia Humana pela USP para o primeiro episódio do Podcast “O Negócio Tóxico do Agro”. Disponibilizamos agora a entrevista na íntegra, que pode ser conferida abaixo.
O episódio narra o caso emblemático de uma comunidade tradicional do Parque do Mirador, uma unidade estadual de conservação que fica localizada ao sul do Maranhão e que teve sua terra e seu rio contaminados pelo uso de agrotóxicos. O caso revela uma realidade cada vez mais comum no Brasil: o uso de agrotóxicos como arma química para expulsão de povos e comunidades tradicionais de suas terras. A situação é provocada principalmente pela atuação da bancada ruralista no Congresso Nacional, que atua constantemente para flexibilizar ainda mais as normas e registros de veneno no país.
Além do Allan, o episódio conta com a participação da professora e doutora em Geografia Humana pela USP, Larissa Bombardi, o deputado federal Nilto Tatto (PT-SP) e a Maria Kazé, que é membro da coordenação nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. Ao longo do podcast temas como agroecologia, resistência popular, assistência jurídica e direito reprodutivo serão discutidos.
Ouça o Podcast O Negócio Tóxico do Agro em:
Entrevista da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida com o pesquisador do ObAgro, o geógrafo Allan de Campos
Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida (CPCAPV): Como você avalia a transição da agricultura para o sistema agro-capitalista?
Allan de Campos (AC): Diferentes povos ao redor do planeta domesticaram plantas, que nas suas versões originais seriam irreconhecíveis pra gente hoje.. bananas com sementes enormes e pouca polpa, os tomates pequeninhos.. podemos dizer que a história da humanidade está ligada com a sua capacidade não só de cultivar mas transformar plantas, paisagens… acontece que com o advento da modernidade capitalista, a agricultura passou a ser orientada por um critério absoluto, que é a produtividade, ou seja, quão rápido eu consigo colher o produto desta planta. Quando a sociedade moderna introjeta esse critério acima de todas as outras qualidades que uma planta/paisagem possuem, como capacidade de resistir à bactérias, capacidade de resistir à seca, qualidades essas contidas na sua diversidade, uma hora ou outra o feitiço acaba virando contra o feiticeiro. No caso do Brasil, se a gente for lembrar, a colonização nasce com o sentido de produzir mercadorias tropicais pra Portugal, como a cana-de-açúcar, produzida por mãos de pessoas sequestradas na África e escravizadas pelos traficantes e senhores de engenho.. se você for parar pra pensar, a economia da cana se baseia, por um lado na simplificação radical da existẽncia do ser humano escravizado como uma máquina de trabalho abstrato, cuja função é colher cana e pronto, uma economia que produziu inclusive epidemias de malária e a febre amarela.. mas do ponto de vista da paisagem, quantas florestas, campos e várzeas não foram desmatados para dar lugar aos latifúndios de uma planta só, a cana-de-açúcar? Então vemos também essa simplificação radical da natureza… e isso é um problemão.. a primeira vez que uma bactéria foi identificada atingindo plantas foi justamente na cana-de-açúcar, durante a epidemia da gomose em 1860… Essa bactéria prosperou justamente porque a economia colonial e escravocrata se orientou pela produtividade em detrimento de todo o resto e eliminou os sistemas sócio-ecológicos mais complexos que aqui existiam… Essa bactéria (Xanthomonas axonopodis) chegou a causar enormes prejuízos na produção de cana.. e aqui a gente começa a enxergar a falta de inteligência desse projeto todo de produção de mercadorias ecologicamente simplificadas.. A forma moderna e capitalista de agricultura é um verdadeiro campo de testes para a evolução e a reprodução ampliada e descontrolada de patógenos, cada vez mais resistentes… e isso vai valer também para pecuária industrial, para bactérias e vírus. Além deste aspecto da produtividade em detrimento da biodiversidade das paisagens, o outro problemão da agricultura capitalista está no uso de fertilizantes químicos e no uso de agrotóxicos.. as propaladas invenções geniais da revolução verde.. Acontece que, combinados, os fertilizantes e os agrotóxicos, não só esgotam os recursos naturais, como deixam plantas, animais e humanos doentes.. E até o “papa” da revolução verde, o biólogo Norman Borlaug, que sempre trabalhou nesse sentido do melhoramento voltado para a agricultura capitalista, acabou reconhecendo que agricultura sem biodiversidade representa uma ameaça mesmo. A agricultura capitalista, nós chamamos de entrópica, porque ela não sustenta a si mesma, ela sempre vai depender de insumos externos, que na prática, vão se revelar como uma espécie de balança ecológica destrutiva, que liga por exemplo, as fábricas de agrotóxicos européias e os campos de cultivo no Brasil, como mostra a pesquisa da Larissa Bombardi com o seu livro “Agrotóxicos e Colonialismo Química.. Por outro lado, existem milhares de formas de produzir alimentos, nas tradições alimentares dos povos, que prezam antes de tudo pela capacidade regenerativa das suas paisagens.. no Brasil sobram exemplos, como as agroflorestas quilombolas e indígenas, para falar de alguns. Os povos originários, como os nossos indígenas, lidam com a agricultura como um colecionador com a sua coleção, por isso a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha fala em povos da megadiversidade, sempre em busca de ampliar a biodiversidade.
CPCAPV: Qual a relação do uso de agrotóxicos na saúde da população?
AC: Apesar de não parecer, a história dessa relação, entre agrotóxicos e adoecimento da população já é um pouco longa… Se a gente for lembrar, o DDT um agrotóxico utilizado como inseticida em plantações, apesar do amplo consenso em torno dos males que ele causa, só começou a ser proibido no Brasil em 1995, apesar de já ter sido proibido nos EUA em 1972. A luta específica contra o DDT vem desde os anos 1960, quando a norte-americana Rachel Carlson escreveu o livro “Primavera Silenciosa”, denunciando a relação entre este agrotóxico, a morte de insetos e aves e o câncer em seres humanos. A Rachel Carlson também já falava do problema da resistência das chamadas pragas aos agrotóxicos, já que a natureza sempre vai encontrar caminhos para burlar as nossas tecnologia de eliminação da vida… que eu chamo de tecnologias antibióticas.. mesmo com essa vitória, hoje a gente ainda está enredado profundamente nesse problema.. em todo o mundo a agricultura capitalista avança com uma promessa que mais parece uma ameaça: as grandes corporações querem transformar qualquer ato de plantar em uma mercadoria, uma atividade propriamente capitalista. Para isso foi criado todo um mercado de sementes de alta produtividade, agrotóxicos e fertilizantes químicos, o chamado “pacote tecnológico”. E um dos agrotóxicos mais utilizados nas plantações de grãos, como a soja, é o Glifosato, conhecido pelo seu nome comercial, Round-Up e produzido pela Monsanto, hoje controlada pela Bayer. O glifosato é um herbicida, mata outras ervas e deixa só a semente da Monsanto nascer.. A Monsanto já fez de tudo para contornar as acusações de que o glifosato causa câncer.. em algum momento eles chegaram até a assumir essa culpa, pelo menos em parte, quando em 2003 vazou um email de um cientista da empresa dizendo um dos ingredientes do Round-up, que ajuda na absorção do produto, de fato causaria câncer... De qualquer maneira, hoje a Monsanto responde a centenas de milhares de processos que ligam o glifosato ao câncer.. e a empresa já foi condenada a pagar muitas indenizações nos casos já julgados.. na última decisão em Dezembro de 2022, ela foi condenada a uma indenização coletiva de 11 bilhões de dólares. Os agrotóxicos da categoria do glifosato, chamados de organoclorados, podem ser transmitidos pela mãe ao feto ou ao bebê pelo aleitamento materno, tendo sido associados também a um crescente número de casos de autismo em crianças. Então, eu diria que os principais problemas dos agrotóxicos estão na ocorrência de câncer e no autismo, mas também nas doenças neurodegenerativas, problemas cardíacos, de fertilidade e abortos.. mas a simples exposição ao produto pode causar vômitos, náuseas, fraquezas.. No Brasil nós temos um problema enorme que é a pulverização de agrotóxicos por aviões, que já foi proibida no estado do Ceará, mas que acaba sempre causando enormes problemas de saúde, inclusive para crianças, como no caso em SINOP, capital da Soja no Mato Grosso do Sul, em que um avião jogou agrotóxico em cima de uma escola. Em um relatório do final de 2022, a UNICEF estimou que cerca de 27 milhões de crianças e adolescentes estejam expostos a agrotóxicos hoje no Brasil.
CPCAPV: O que a produção de mercadorias para a economia global tem a ver com tudo isso?
AC: Estamos vivendo ainda a ressaca de daquilo que a socióloga argentina Maristela Svampa chamou de consenso da commodities, e isso vale para o Brasil, mas também para a América do Sul e a Europa.. isso significa que as agendas políticas dos países estão sequestradas por essa forma, simbolizada pelas commodities, que no final é uma palavra em inglês para mercadoria, mas que simplesmente quer abarca a soja, o minério de ferro, etc.. na prática esse consenso em torno das mercadorias ou commodities significa que em 2022 o Brasil investiu mais de 200 bilhões no agronegócio e falhou em fortalecer as iniciativas que nos alimentam e nos protegem, além de abrir espaço para grupos de saque e destruição como os garimpeiros nas terras yanomami. As consequências deste arranjo podem resumidas naquele caso, que todo mundo deve lembrar, das pessoas em busca de ossos dentro num caminhão, para fazer sopa, no Rio de Janeiro. O que nem todo mundo lembra é que aquilo aconteceu no mesmo mês em que a China deixou de importar a carne de boi do Brasil porque surgiram dois casos de vaca-louca aqui no Brasil, em setembro de 2021. A vaca-louca é uma doença infecciosa que também pode ser produzida naturalmente pelos próprios animais quando ficam velhos… A China resolveu cortar as compras na hora, com medo de um contágio maior. Em meio ao bloqueio, os ruralistas brasileiros chegaram a alugar containers frigorificados para armazenar a carne de boi até que o bloqueio fosse suspenso. Quando um produtor do agro foi perguntado se aquela crise faria os preços das carnes caírem, ele respondeu que o mercado brasileiro já estava “saturado” - mais de 33 milhões de pessoas passando fome é “mercado saturado”, porque para o mercado, sujeito só é aquele que consome as suas mercadorias, quem não tem dinheiro está fora da equação. Bom, sem entrar no mérito de que, por causa dessa “saturação do mercado”, frigoríficos estavam fechando e demitindo trabalhadores, os produtores de bois começaram a adiar o tempo de abate dos bois no pasto. Bois em decúbito, mais velhos, têm chance de produzir essa mutação, que causa a vaca-louca. Ou seja, o agro do boi não mata a fome, ele negocia os níveis aceitáveis de fome em seres humanos para que possa continuar se reproduzindo, enquanto produz doenças como um mero efeito colateral da “saturação do mercado”. Eu me pergunto, até quando a sociedade brasileira vai continuar dobrando essa aposta? Porque não secar a fonte que financia com dinheiro público o agronegócio e direcionar estes recursos para iniciativas de agricultura regenerativa, que curam e alimentam as pessoas e as paisagens. Também vale a pena lembrar que o agronegócio em todo o mundo é profundamente subsidiado pelos Estado, porque os níveis de produtividade que a agricultura capitalista atingiram colocaram a sua própria economia em cheque. Sem ajuda do Estado, o agronegócio quebra. Por outro lado, aos poucos a agenda das mudanças climáticas vai se infiltrando na economia de mercado, mas só de forma leve, dando um tom, mais do que reorganizando profundamente as nossas práticas. Quando a pesquisa sobre agrotóxicos no Brasil conduzida pela Larissa Bombardi chegou na Europa, redes de supermercados europeus passaram a boicotar produtos brasileiros e logo uma horda de ideólogos do agronegócio começou a fazer barulho e acusar de lesa pátria pesquisadores que simplesmente apontavam os fatos. O que eu penso desse consenso das commodities é que ele tem alguns poucos caẽs de guarda que fazem muito barulho, por causa do apoio das mídias corporativas. Mas com tanta fome, adoecimento, morte e destruição, não tem como esse projeto parar de pé por muito mais tempo.
CPCAPV: Qual é a relação entre o agro, a destruição ambiental e as pandemias?
AC: É aqui que o negócio começa a ficar mais complicado. Veja só, a soja: depois da moratória da Amazônia, um projeto que uniu esforços para tentar frear o desmatamento da Amazônia, começou a avançar com força sobre o Cerrado. E mesmo sobre a Amazônia, os efeitos da moratória ainda foram muito restritos. Temos visto taxas de desmatamento alarmantes em todos os nossos biomas.. É só lembrar das dramáticas queimadas no Pantanal, como aquelas que deixaram escuro de fumaça até o céu de São Paulo. Quando destruímos a Amazônia, o cerrado, o pantanal para dar lugar aos latifúndios de mercadorias do agronegócio, estamos destruindo as bases sociais e ecológicas que poderiam nos tirar dessa enrascada. Mas, pior do que isso, estamos também criando problemas novos. Uma pesquisa recente liderada pela Cláudia Codeço mostrou como as áreas em que predominam o boi e a soja têm índices maiores de algumas doenças infecciosas, como a hantavirose e a dengue. A própria COVID-19 surgiu de um contexto de destruição florestal e pecuária industrial no sudeste da Ásia.. os morcegos, prováveis animais hospedeiros originais do vírus da COVID-19, estão perdendo as árvores de pousio, que vão dando lugar para as fazendas de grãos e criação de animais em escala.. Essa é a condição ideal para que os vírus de animais silvestres saltem para animais da pecuária e exercitem ali os seus caminhos evolutivos para eventualmente produzirem uma variante que seja capaz de infectar seres humanos. A Amazônia sozinha tem cerca de 120 espécies de morcegos, cada uma contém entre 2 ou 3 espécies de coronavírus silvestres. Criar frangos e porcos às dezenas de milhares, na fronteira da floresta desmatada, por exemplo, é criar uma ponte que liga os seres humanos às novas doenças infecciosas.
Desde 2023 atingimos um novo patamar para que a gripe aviária, causada pelo vírus H5N1, se torne pandêmica. Depois de arrasar com bandos de aves de criação intensiva nos Estados Unidos (38 milhões de aves abatidas), na Europa, na Ásia, a doença atingiu aves silvestres na América do Sul. E por último, aconteceu na Espanha um surto que atingiu uma fazenda de visons, aqueles mamíferozinhos criados para usar a pele. Depois, em 2024, trabalhadores de frigoríficos bovinos desenvolveram um conjuntivite que foi associada à infecção pelo vírus da gripe aviária, que já descobriu como infectar diversos mamíferos não humanos. Houve um momento em que cerca de 25% do leite nos EUA continha traços de gripe aviária. Nessas condições do monocultivo genético e em larga escala, a gripe aviária está a cada dia mais próxima de produzir uma mutação que torne o vírus capaz de ser transmitido e causar doença em seres humanos na forma respiratória.. justamente como aconteceu com a COVID-19. Nós não só não aprendemos nada com a COVID-19 como estamos acelerando as formas pelas quais novas doenças emergentes se proliferam. A origem deste modo de produção de pandemias está na destruição ambiental e no avanço do monocultivo de grãos e animais em escala, ou seja, no agronegócio como tal. Por isso, se há uma coisa que precisamos entender é que a agricultura capitalista, que hoje assume a forma do agronegócio, é um projeto suicida e precisa ser abolido.
CPCAPV: Como você avalia a atuação do Congresso Nacional sobre a liberação do uso dessas substâncias? Há perspectiva para a redução de agrotóxicos no Brasil?
AC: Até 2022, a atuação do Congresso a respeito da liberação dos agrotóxicos foi vergonhosa. Nos últimos 4 anos, durante o governo Bolsonaro, foram aprovados mais de 2.000 tipos de agrotóxicos novos para utilização no Brasil. E como tem sido dito, no apagar das luzes do governo, no dia 19 de dezembro de 2022, uma comissão do Senado aprovou o Projeto de Lei dos Agrotóxicos, apelidado de Pacote do Veneno. O projeto em discussão desde o final dos anos 1990 propõe alterar e flexibilizar as regras pelas quais os agrotóxicos são aprovados e comercializados no Brasil. E esse pacote foi aprovado ao final de 2023, no primeiro ano do novo governo Lula, por um congresso sequestrado pela agenda do agronegócio. Um outro elemento que o projeto propunha era fixar o termo “pesticida” ao invés de agrotóxico.. e isso é muito importante, porque é um tipo de manobra da opinião pública. O termo pesticida já em desuso nos estudos críticos, faz menção parte daquele imaginário de que a agricultura é um empreendimento higienista, existem as espécies cultivadas e as pestes ou pragas. Então, a substância utilizada para combater essas chamadas pestes seriam os pesticidas. Acontece que existe uma disputa sobre esse entendimento, porque para a agricultura regenerativa, para a agroecologia, o sistema encontra formas de produzir sem utilizar essas tecnologias de eliminação da vida, sem tais tecnologias antibióticas. Os princípios da agroecologia apontam justamente nessa direção.. um dos principais precursores da agroecologia, o agrônomo francês Chaboussou percebeu que era preciso alterar essa paradigma enquanto trabalhava na produção de vinhos na França… e propôs a teoria da Trofobiose.. que aponta justamente que o uso de fertilizantes químicos e agrotóxicos deixa as plantas doentes. Isso está relatado direitinho no livro dele, chamado: Plantas doentes pelo uso de agrotóxicos, publicado pela Editora do MST, a Expressão Popular. Por fim, o que essa mudança no nome procurava esconder é que os agrotóxicos são tóxicos, ou seja, deixam as pessoas e paisagens doentes, então não é simplesmente um pesticida, é um produto tóxico que nos afeta a todos. Agora, é claro que há perspectiva de reduzirmos o uso de agrotóxicos no Brasil, mas isso vai depender de uma tomada de consciência e uma mobilização de toda a sociedade brasileira, porque ela é mais forte e sabe melhor sobre o futuro do que a bancada do agronegócio.
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Entrevista concedida em fevereiro de 2023 e revisada em agosto de 2024. Mais informações em:
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